quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Fale tudo sobre ela

Ezra Pound disse, referindo-se ao escritor Henry James, que havia previsto e antecipado o Armagedon, trinta anos antes da Grande Guerra: "Os artistas são a antena da raça."
Além de ser pintor, e conviver através do exercício da profissão com certas percepções, talvez mais aguçadas das que habitualmente se tem, pude comprovar a eficácia e veracidade deste conceito quando, em 2002, fui assistir "Fale com ela" de Pedro Almodovar. Há muitos anos antes eu tinha vivido uma história muito semelhante àquela do filme e tive a sensação de que o diretor , não sei como, recebeu as minhas ondas, ( vibrações , ou seja lá o que for que a gente manda para este tipo de antena) na hora de escrever o roteiro deste filme . No meu caso, não tinha toureira mortalmente ferida no leito ao lado e, infelizmente, Caetano não cantou.
Fiquei vinte e um dias entrando e saindo do CTI de certo hospital com uma falsa identidade ,cuidando de uma paciente e ,como o rapaz do filme, passei-lhe cremes, loções para limpeza da pele ( calêndula, lembro-me bem) , conversei sem ter certeza de ser ouvido e, como o roteiro neste caso exigia do personagem, passei ,no papel de Doutor, muito aperto para dar parecer sobre exames dos quais eu não entendia patavina. Demonstrando uma certa aptidão para as câmeras, fazia cara de inteligente , meditabundo, franzia o senho , punha a mão no queixo e, canastrice ímpar,mostrava , uma determinação ferrenha de herói salvador de pessoas indefesas pela doença: durante uma crise ,proibi que lhe aplicassem dolantina ( um analgésico derivado da morfina muito usado após cirurgias) por não saber do que se tratava ,sendo levado em seguida, num momento de grande suspense, a uma reunião com o chefe do plantão noturno que ,estupefato diante de minha ignorância, explicou-me a fórmula e o uso do medicamento. Para completar a tensão reinante ,o médico cuja identidade eu havia assumido, me fazia ameaças mortais ao telefone :" Você vai jogar meu nome na lama!" deixando implícitas possíveis atitudes de revanche e de vingança.Convicto de meu papel na perigosíssima farsa,entrava e saía do prédio pelo elevador de serviço, juntamente com a roupa de cama do hospital, receoso de que me tomassem de volta o mágico crachá que me permitia entrar ali e interrompessem uma promissora carreira de ator de seriado de TV que se iniciava. Agia como se fosse uma mistura de Dr Kildare ( hoje seria House) com um esteticista shamânico capaz de aplicar cosméticos de efeitos milagrosos e rejuvenecedores .Sejamos justos: não propriamente devido à minha atuação, já que eu era ainda um mero figurante nesta história, o negócio deu certo e o final foi feliz. A mulher, tida como morta ao dar entrada no hospital,ficou boa, como acontece também na versão espanhola Contudo, não transamos, não tivemos filho e não fui para a cadeia por isto. Pudera, tratava-se de minha mãe, e eu , ao contrário do título do filme anterior de Almodovar,não falei aqui ,nada sobre ela.



Pedro Almodovar o "antenado" diretor de "Tudo sobre minha mãe"
e " Fale com ela"

Location:Vila del Rey

2 comentários:

  1. No poema "Infância" do Drummond, ele sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé , bonita história que não acaba mais, enquanto sua mãe ficava sentada cosendo e seu pai campeava. Ele termina o poema dizendo que não sabia que sua história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Pois eu acho que a sua história de tudo por sua mãe é muito, muito mais bonita que a história de Almodovar."Que fundo!..."

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  2. Que liiiindo! Ate chorei.
    Peninhas em leque! de tanto orgulho de ser da mesma especie.
    C.

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