sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sally Bowles

Engraçado como a gente nota certos detalhes nada lisonjeiros na pessoa, depois que a paixão acaba : a pele do rosto um pouco suada , uma barriga ligeiramente proeminente e até mesmo um vestido mal feito e mal acabado.Foi o que aconteceu outro dia comigo em relação a Sally Bowles,quando a revi cantando "Life is a cabaret" no Youtube, depois de anos de afastamento, em consequência de um longo e sofrido romance: ela, Liza Minelli, atuando em Cabaret lá na tela ,e eu cá, devoto apaixonado , na platéia. Onze vezes eu fui vê-la; decorei todas as músicas, os diálogos e , não satisfeito, ouvia o disco da trilha do filme no meu quarto à noite. Meu Deus , como éramos íntimos! Ela cantava para mim, músicas que tinham sido escritas para nós. Almas gêmeas predestinadas ,um encontro escrito nas estrelas: fomos feitos um para o outro! Pelo menos era o que eu pensava até que ela , Liza ,resolveu vir ao Brasil e com isto me desconcertou profundamente. Antes de Woody Allen criar " A Rosa Púrpura do Cairo" em 1985, eu iria viver ,nos anos setenta, uma experiência equivalente e premonitória: minha amada sairia das telas e viria ao meu encontro nos trópicos. Arrumei a mala, coração disparado, e fui para o Rio de Janeiro encontrá-la no Teatro do Hotel Nacional em São Conrado.Sabe que eu quase não aproveitei ? Ela ali no palco, cantando e dançando ao vivo, foi demais para mim; voltei à dimensão anterior e me comportei como se estivesse vendo no cinema o seu show "Liza com Z", protegido por aquela película finíssima que impede que toquemos com as mãos as nossas fantasias , preservando-as como sonhos inatingíveis .Mas ,não, não era para ser assim tão poético: no dia seguinte fui ver o show dos Dzi Croquettes ,um grupo de bailarinos e atores, proposital e caricaturalmente travestidos- contracultura na época da ditadura militar-comandados por Leny Dale, um dançarino extraordinário,uma celebridade e um amigo de... Liza Minelli que, por sua vez , estava lá também e sentou-se bem na minha frente na poltrona de um pequeno teatro em Ipanema. Agora eu podia tocar aquele redemoinho que Sally tinha nos cabelos, a menos de 50cm dos meus dedos. Conflito, rejeição, frustação, minha pobre cabeça parecia um pequeno compêndio de distúrbios emocionais , a quilômetros de distância da pessoa que ,paradoxalmente,eu considerava a mais próxima de todas. Não deu outra : fiquei ali paralisado, olhando para a parte de trás de sua cabeça e nem nunca soube do que se tratava o show que tinha ido assistir. Algumas horas mais tarde, sugestionado pelo grupo de amigos que estava comigo, fiquei em pé na calçada esperando que ela saísse, dando uma última chance ao nosso amor impossível que, ao contrário do desejado, iria acabar ali mesmo, em alguns instantes.Quando ela apareceu ( coberta de purpurina, imagino que depois abraçar os bailarinos no camarim), passou por mim como um trator. Eu,atônito, tentando balbuciar alguma coisa, tive uma resposta mais que negativa a uma tentativa de aproximação e a um suposto pedido de autógrafo : " Não tenho caneta, não tenho caneta", berrou ela, seguindo em frente em direção ao carro que a esperava.
Antes de sair do ar, não sei porque , pensei na célebre frase de Eça de Queiroz:
" O manto diáfano da fantasia que cobre a nudez crua da verdade".








Minha amada em pleno exercício de sua função em " Cabaret"



Os "Dzi Croquettes"

Location:Vila del Rey

Um comentário:

  1. Olá Fernando,
    Adorei este e o outro texto da boate gay.
    Vc escreve mto bem, seu texto flui como se fosse uma conversa.
    Vou acessar o blog. Continue escrevendo que eu gostei mto e vou recomendar aos amigos.
    Forte abraço.
    Geraldo

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